domingo, 16 de novembro de 2008

Se meu fusca falasse

Desde que engravidei de Júlia comecei a perceber melhor o relevo da cidade, as calçadas mal feitas e a falta de solidariedade das pessoas.

Primeiro o peso da barriga e das pernas, o olhar de reprovação das pessoas que estavam sentadas no ônibus diante da barriguda em pé e dos motoristas que não se constrangiam em partir antes que eu subisse o segundo degrau.

Depois comecei a penar subindo metade da serra da Cantareira para caminhar do ponto de ônibus até o meu lar com o meu chumbinho nos braços e/ou no carrinho, as calçadas que não favorecem o deslizamento das rodinhas, além dos cocos dos cachorros que insistiam em prejudicar meu percurso.

Resolvi então tirar minha velha carteira de motorista da bolsa, colocar a chave no contato e superar o medo dos inimigos atrás dos outros volantes.

O começo foi difícil e deslumbrante. Todos os lugares pareciam mais próximos e as sacolas com mamadeiras, fraldas e lenços umedecidos mais leves.

Isso até eu perceber que estava me desconectando do mundo: não reconhecia mais meu bairro, não percebia as mudanças na paisagem e nas relações entre as pessoas, não me relacionava mais na rua, no ponto, no banco ao lado.

O cruzamento de olhares, próprio das faixas de pedestre, passou a ser intermediado pelos pára-brisas.

O incômodo de ser automobilizada está cada vez maior, e é incompreendido pelas pessoas que me cercam.

Acredito que a readaptação ao mundo sem rodinhas será difícil: à distância entre o ponto e a minha casa parecerá maior, minha filha está cada vez mais pesada e os ônibus mais lotados. Mas esta será a única maneira de me sentir pertencente ao turbilhão da vida urbana.

Semana passada Ana Sylvia comentou que estava tirando a carteira de motorista: Boa sorte!!! Você vai precisar.

domingo, 9 de novembro de 2008

Antes da minha filha nascer (em outubro do ano passado), fizemos um caderno de conselhos para ela. Achamos que ela precisaria de alguns caminhos na vida e ninguém melhor do que nossos familiares e amigos para sugerir rumos a trilhar.

Segue abaixo a minha cartinha...

Filha

De bom dia ao sol todas as manhãs e boa noite a senhora lua no fim do dia. Ande descalça na areia. Tome banho de mar: esteja quente ou não, com roupa ou sem, sozinha ou acompanhada. Coma morangos com leite condensado, farinha Láctea de colherada e chupe limão com sal (principalmente quando estiver grávida). Leia Clarice Lispector, Machado de Assis, Paulo Leminski. Bata nos meninos enquanto puder, chore o quanto quiser e acorde tarde no domingo para ele passar mais rápido. Tome banho de cachoeira, cerveja, coca-cola, leite com Nescau e suco de laranja. Só fique de porre acompanhada de alguém que você confie, e tome bastante água para curar a ressaca. Beije e abrace bastante todos aqueles que você amar. Não seja egoísta: nada, nem ninguém nos pertence realmente e o mais gostoso de tudo é dividir: as coisas, a cama, as alegrias, as tristezas, a vida, a dor da morte e da saudade. Diga que ama as pessoas que você realmente amar e deixe claro os seus sentimentos aos outros (para que elas não se iludam). Viaje! Ouça Chico Buarque, Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Raul Seixas. Estude, isto vai lhe poupar problemas com a mamãe e o papai. Erre, acerte, volte a errar e não desista: não tem jeito, a gente sempre erra. Não cresça rápido! Deite de manhã entre a mamãe, o papai e a Leona, os três vão reclamar, mas vai valer a pena! Mas se não quiser fazer nada disso, não faça. O importante é ser você mesma!
Já te amo muito e isso só tende a aumentar.
Inverno quente e doce! Julho/2007.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

À CAMINHO DA MEDIOCRIDADE

A Forma Casca das Instituições

PARTE I

Há alguns anos, trabalhando com educação na rede particular de ensino básico, a menina, que terminava seus estudos numa faculdade pública, dizia a seus colegas de trabalho:
- É, no ensino básico de uma escola pública não se ganha lá aquelas coisas, mas existe a estabilidade de emprego, todos os meses vou ter a certeza de que o dinheiro vai estar na conta, e outra, a escola é pública! A sala de aula é minha e das pessoas que estão lá dentro, assim que eu fechar a porta da classe, eu vou me entender com os alunos e a gente vai poder aprender do modo como sentirmos a vontade, contra toda essa papagaiada formal que não leva ninguém a lugar algum, nem à faculdade.
Depois de um tempo, a menina se formou, com pressa e pressão, já que havia passado no concurso público para ser professora de nível básico na rede estadual de ensino. Calhou de a menina escolher uma vaga disponível no sistema que correspondia a escola que estava entre as três piores colocadas no ranking de classificação das escolas estaduais (ela nem sabia que isso existia).
E para lá foi.
A escola situava-se no extremo da cidade, no limite com outro município. Apresentava vários problemas de naturezas diversas: desde falta de professores até falta de água durante semanas, além de condições nada propicias de trabalho. Contudo, havia também coisas boas – os professores que lá trabalhavam, em geral, lhe pareciam pessoas incríveis, dispostas a construir (no sentindo amplo da palavra). E os alunos... Tão heterogêneos com um misto de resistência e receptividade um tanto convidativo ao desenvolvimento de um trabalho novo.

PARTE II

- Não vou maquiar nada.
- Querida, disse à menina, aqui a gente tem que cumprir ordem, esse projeto passado você nem terminou e esse outro que a diretoria mandou era para ontem! Eu tenho que obedecer minha dirigente, não tem espaço para revolucionário. O provão tá aí e o nosso bônus está ligado ao desempenho da escola esse ano. Se você quer fazer uma coisa diferente vá para outro lugar.
- Eu achei que o outro lugar fosse aqui. Achei também que as escolas públicas, de acordo com o regimento dessas instituições, caminhariam para uma gestão participativa... Não estou preocupada com o bônus. E não sou sua querida (quiçá nem revolucionária...).
(A.S.M.R.)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A invenção da infância.

Escrevi este texto assistindo um documentário brasileiro de mesmo nome.

Acho que estou ficando uma pessoa amarga: não consigo compreender esse mundo de gente preocupada com o aquecimento global, enquanto ainda existem crianças cortando sisal e quebrando pedra.

Me questiono se é possível uma criança aprender a respeitar a natureza se ela não respeita o próprio corpo, se não respeita o próximo... aquele que estuda na carteira ao lado.

Os ecologistas de plantão vão questionar a “sustentabilidade” do mundo e outros temas da moda. E a “sustentabilidade” do ser humano? Os direitos básicos? O direito a uma infância digna?

Me pergunto porque as pessoas não se indignam mais com a miséria e a violência? Com a sensualidade exacerbada das crianças e a violência sexual praticada rotineiramente contra elas? Com esse consumo desenfreado que limitou a vida a comprar, vender, ganhar e, porque não, ser comprado?

Estou me tornando uma pessoa amarga... talvez até piegas... mas essa amargura também me torna uma pessoa sensível as mazelas do mundo. E isso é o que me diferencia nesse mundo capitalista massificado.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

“Dias sim, dias não eu ou sobrevivendo sem um arranhão, da caridade de quem me detesta”.

Para!! Para de fingir que esta me ajudando,
Que é caridoso, que faz tudo isto por mim...
Eu sei muito bem quem você é, não pense quem me engana:
Ou você acredita mesmo que engana alguém?

Não me venha com essa de que gosta de mim,
Pensa que eu não sei das suas conspirações...
Você me vigia, eu te vigio e assim a gente vai se observando...

Tô meio cansado de ficar te provando pra que você me aprove.
Tô cansado de você me dizer o que fazer, como fazer, quando fazer...
Pra mim chega! Chega, ta ouvindo... Chega.
Não quero mais te ouvir! Você não tem mais nada pra me ensinar.

Para! Já não quero mais ser parte deste teu jogo sem reflexões.
Já não quero mais fingir que esta tudo bem....
Já sei muito bem sobreviver sem este teu olhar de desprezo
De piedade.
Basta!
A.M.C.G.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

“Feliz aniversário, envelheço na cidade...”

Lembro-me do meu aniversário de quatro anos. Foi no salão de festas do prédio em que morava. Todos os meus amiguinhos, parentes, os pais de meus amiguinhos compareceram. Teve bexiga, bolo, cachorro-quente, brigadeiro... Foi um dia extraordinário numa época da minha vida em que coisas extraordinárias aconteciam com freqüência, e essas coisas extraordinárias tinham o poder de me transformar profundamente.

Ao longo dos anos, meus aniversários foram acontecendo, uns mais extraordinários, outros um pouco menos, mas me lembro de aguardá-los com muita ansiedade e felicidade, como um evento realmente importante em que coisas extraordinárias podiam e iriam acontecer.

Na adolescência, ainda morando em apartamento, os aniversários também eram extraordinários, pois carregavam, como um complemento festivo, o turbilhão e a intensidade de emoções que se misturavam.

Meus amigos, colegas e conhecidos de prédio, também faziam festas de aniversários, e estas também eram extraordinárias.

Durante todos os anos em que morei em prédio (a maior parte da minha infância e adolescência), minhas festas de aniversário ocorriam ora no salão de festas, ora no parquinho, ou ainda tinha aquelas improvisadas que aconteciam dentro do próprio apartamento. As festas de aniversário eram extraordinárias também por serem periódicas. Chegou um tempo em que as pessoas que moravam no prédio, e que apresentavam alguma amizade ou afinidade com outros moradores, decoravam a data de aniversário destes, e os aniversários passavam a ser aguardados coletivamente, uma vez que se sabia que pelo menos um bolinho com uma velinha aconteceria nestes momentos.

Eu me mudei do apartamento faz uns 5 anos. Não me lembro mais das datas daqueles aniversários extraordinários que eram comemorados com um monte de gente que morava no prédio. Lembro-me apenas das datas de aniversário de meus amigos mais íntimos e familiares mais próximos. A maioria das pessoas que conheço comemora o aniversário em um barzinho, ou casa noturna e esses aniversários são divertidos e são bacanas porque reencontro as pessoas de que gosto. Mas essas festas não são mais extraordinárias. Hoje, nem aguardo mais ansiosamente o meu aniversário. Já nem sei mais como comemorá-lo....
(A.S.M.R.)

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Culpa Social.

Texto produzido para a aula do Júlio Groppa. Momento de auto-punição.

Culpa Social.

Sim, somos culpados!! Somos culpados por aquilo que fizemos e por aquilo deixamos de fazer. A ordem social está sim fragilizada, contrariando as idéias de Zizek. Estamos em um colapso ético e moral que se aprofunda a cada Katrina, a cada Hotel Ruanda, em todas as salas de aula onde professores e alunos são marionetes comandadas por organismos internacionais manipuladores.

Sim, somos culpados!! Somos parte de um jogo sem comandantes. Nos esquivamos, disfarçamos, trocamos acusações. Não, não, não queremos admitir esta culpa que está tão evidente! Não tomamos as rédeas! Atribuímos as nossas derrotas pessoais e coletivas a algo maior, que não sabemos direito do que se trata!

Sim, somos culpados!! Somos força morta, seres sem identidade, atores sem papel querendo ser protagonista... Fazemos parte (e somos a parte) de uma sociedade individualista, que não divide, não soma e não multiplica, só faz subtrair. Somos isto, e isto é tudo o que somos!!!

(AMCG)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Apropriação do tempo

Pensando neste tempo acelerado, em que os encontros com os amigos não ocorrem, pensei em duas coisas: a primeira, uma frase de uma música da Elis que diz mais ou menos assim "sentimental eu fico (...) sou um lobo cansado carente, de cerveja e velhos amigos"; a segunda em um texto que escrevi para a aula de Psicologia da Educação sobre políticas contemporâneas do corpo, da alma e da mente. Eis o texto:
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5h30 da manhã. A cada toque do despertador sinto uma pontada gélida no estomago. Levanto o braço para desligá-lo. Primeiro passo: enrijeço as costas para diminuir o tempo da respiração. Segundo passo e os seguintes: Contraio o abdomem e observo se este diminuiu de ontem para hoje, já que a muito me privei do doce, principalmente do chocolate. Tenciono a nuca, pois esta carrega o peso da culpa pelo dia de ontem mal aproveitado, e carrega também a pressão das coisas para fazer, que esperam o hoje. A energia concentra-se na cabeça com os pensamentos turbilhonados do devir. Pronto. Levanto e estou começando o dia. Estou preparado para receber um soco, se este assim o vier (seria incapaz de desfechar um). E o dia passa, e a respiração mal chega às extremidades do meu corpo, e as coisas não são feitas, e a culpa permanece e eu vou ao terapeuta.
(A.S.M.R.)

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Encontros

Ao ler o comentário da Patrícia, fiquei pensando em como os encontros (não)acontecem na metrópole e escrevi esse texto, baseado nas perturbadoras aulas da Fani.

Encontros

Só com horário marcado. E marcado com muita antecedência. Não vale ligar hoje e querer me ver amanhã. Amanhã não vai dar, óbvio. Tenho compromisso, você mora longe e não consigo pensar em nada para fazermos.

Talvez na próxima semana. No shopping, pode ser? Tenho mesmo que comprar uma bolsa e aproveitamos para colocar a fofoca em dia. Comemos alguma coisa e assistimos um filminho.

Mas... a semana que vêm já é final de mês... não tenho dinheiro... e te ver sai muito caro...
Na outra semana, quem sabe... Já vai ter virado meu cartão e aí sim podemos conversar.

Como? É urgente? Porque não disse antes? Vou pedir o cartão do meu marido e assim poderemos nos encontrar. Você liga de procurar a bolsa comigo?

AMCG

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Duas

Duas geógrafas, professoras, paulistanas, que vivem intensamente, de forma diferente, a metrópole: uma namorando, participante ativa da vida cultural da cidade, às portas do mestrado, lecionando na periferia e apaixonada pelas contradições que a vida urbana produz; outra casada, mãe recente de uma linda garotinha, afastada temporariamente da boemia, revendo sua vida profissional, professora sem sala de aula (obra do nosso atual prefeito), atualmente tentando ler os clássicos da literatura mundial (sem pretensões de terminá-los), resolveram democratizar seus textos e pensamentos para polemizar, um pouco mais, a vida intelectual nesse país que anda um pouco chata, monótona, monocromática.

Começaremos com textos que apresentamos na faculdade, especialmente nas disciplinas Geografia Urbana (Ana Fani A. Carlos), Psicologia da Educação (Júlio Groppa Aquino) e Trabalho de Campo I (Amélia Damiani), que nos permitiram refletir mais livremente sobre a vida cotidiana. Depois.... a gente vê o que faz.